O símbolismo de Gilgamesh, o Homem que não podia morrer

O símbolismo de Gilgamesh, o Homem que não podia morrer


Escrito por Administrator

Ter, 05 de Abril de 2011 08:43

O tema de hoje, obviamente, na nossa cátedra de Fenomenologia Teológica o estudamos de uma maneira técnica. Estudamos as traduções dos rodapés e tabuletas sumérias, babilônicas, etc., que esses homens do terceiro e quarto milênio antes de Cristo nos deixaram.

Neste legado encontramos referências ao Mito de Gilgamesh. Vamos analisar este mito sob o ponto de vista simbólico e não tão técnico, de modo que nos possa interessar a cada um de nós.

Pessoalmente, creio que não só na história dos símbolos, mas ainda na história dos acontecimentos humanos, o mais importante não é captar a parte técnica ou formal - porque o técnico e formal passa - mas captar o espírito, captar os motores que puderam mover os acontecimentos históricos, seja na parte material, econômica, política, espiritual. Refiro-me àquela parte que sobrevive em nós como humanidade e que é sempre fresca e atual. Então, Gilgamesh não vai ser para nós somente aquele gigante sumério filho de Enlil, mas um símbolo, algo que pode estar vivo, que pode estar entre nós, que pode estar em cada um de nós.

O mito de Gilgamesh é, talvez, a forma mais antiga que conhecemos do herói que combate contra o dragão, do herói que combate contra as sombras, do herói que combate contra os inimigos. Gilgamesh é o protótipo do que será Heráclito na Grécia; do que será Hércules entre os romanos, e ainda mais, de São Jorge em sua luta contra o Dragão através de toda a mitologia medieval. Gilgamesh é um protótipo que vai se projetar através dos séculos.

Gilgamesh é o filho de Enlil e se diz - segundo todas as parábolas e todas as formas simbólicas - que é esse gigante que apareceu na Terra sedento de fazer uma série de grandes obras, de poder derrotar os inimigos da humanidade, de poder transpassar as neblinas.

Existem várias versões que conjugaremos em uma só para tratar de conseguir certa ligação, algo comum a todas.

Gilgamesh tem a princípio uma vida solitária; dedica-se a vagar pelos bosques e planícies e a investigar todas as coisas. Pergunta-se sobre si mesmo, sobre o mundo e sobre a natureza, até que tem uma série de sonhos premonitórios que lhe anunciam que vai ter um amigo, que vai ter um duplo, que vai ter alguém com ele. Sonha que na cidade de Uruk cai do céu um machado de fio duplo.

O machado é um dos símbolos que existem em todas as mitologias. Em suas formas curvas representa o Universo; em sua utilidade é o símbolo do que o homem pode fazer com sua vontade. É a ferramenta física para poder talhar, lavrar as neblinas, lavrar a terra e colocar a semente.

Gilgamesh sonha que o machado cai no meio das ruas e que todos os homens se reúnem junto ao mesmo e o adoram. Mas, logo, ao encontrar este machado, o chamam de Enkidu. Enkidu é seu "duplo luminoso", Enkidu é seu amigo. Porque Enkidu se transforma de um machado em um ser, em um homem.

Outras versões relatam que este machado foi manejado primeiramente por Enkidu. A este nos apresentam como uma espécie de gigante primitivo e bom que vivia entre os animais, nos bosques. Logo, quando conheceu Gilgamesh, aprendeu os princípios da civilização.

A partir de então, Gilgamesh e seu "duplo luminoso" começam a correr o mundo e fazer uma série de trabalhos ao modo de Hércules. Estas séries de provas são como as provas cotidianas que cada um de nós temos que passar. Porque muitas vezes nos perguntamos se não poderíamos fazer como Hércules, se não poderíamos fazer como alguns dos grandes homens da História: realizar alguma coisa que produzisse uma mudança total e profunda na natureza circundante, na história e na vida.

Mas, às vezes, não percebemos que todos nós, como se fôssemos Hércules, estamos dando voltas na vida vencendo inimigos constantemente, inimigos que podem ser a inércia, inimigos que podem ser o medo, inimigos que são, geralmente, a adversidade; que todos nós, quando aparecemos no teatro do mundo, quando chegamos à vida, entramos assim como através de uma pequena porta e nos encontramos com uma série de rostos de pessoas que nos rodeiam, a alguns conhecemos e a outros não, e sentimos diante do mundo a curiosidade do conhecimento, e sentimos a curiosidade de saber quem somos. Não acontece com todos o mesmo? De repente nos encontramos no meio de uma família, de um povoado, de uma cidade, de um país, de um mundo e nos perguntamos o que é isto que nos rodeia? E começamos a nos adaptar e a cumprir nosso próprio papel ali onde nos encontramos.

Houve um momento em que entramos neste teatro da vida por uma porta... e saímos do mesmo por outra porta sem saber, muitas vezes, nem porque entramos nem porque saímos. Em nossa alienação do momento esquecemos o que éramos antes e não podemos prever o que seremos depois, ou seja, é como se eu lhes falasse hoje de Gilgamesh e minha imaginação estivesse tão fixa em Gilgamesh que não recordasse o que disse antes - porque estou falando de Gilgamesh - e tampouco saberia o que iria fazer dentro de uma hora ou duas.

Não é por acaso essa a nossa própria situação quando, ao surgirmos na vida, nos esquecemos se temos existido em alguma parte e também nos esquecemos de pensar se vamos continuar existindo em outra parte?

Então os trabalhos de Gilgamesh ao vencer, por exemplo, um terrível touro que estava destruindo todas as regiões, ao cruzar sete montanhas simbólicas, ao ter que cortar os enormes cedros com seu machado e com a ajuda de seu amigo Enkidu. Todos estes trabalhos são símbolos de nossa própria vida, porque também nós temos que cruzar muitas vezes montanhas, atravessar rios, cortar os grandes bosques das inércias, os grandes bosques da incompreensão humana que nos rodeia... E temos medos e ansiedades.

Gilgamesh passa por muitas provas. Passa inclusive a prova da tentação de Inanna ou Ishtar (formas da mesma deusa). A deusa de deslumbrante beleza e atração diz a Gilgamesh que se detenha no seu caminho, que não prossiga com todas essas obras, que venha ao seu palácio onde pode receber amor, descanso, bons manjares e excelentes bebidas. Gilgamesh lhe responde com palavras que têm um matiz de eternidade - porque todos nós, ainda que não tenhamos dito, pensamos nelas algumas vezes. -: "Oh, Inanna!, tu és a beleza, tu és tudo aquilo que pode representar o descanso e a paz. Mas acredite no que sou. Eu sou como uma porta que deixa passar o vento, sou como uma cuia que perde a água, sou como um teto que já não cobre, sou um errante, sou um viajante. Meu amor é como uma pedra colada à parede que cai a qualquer momento... Permita-me seguir a minha busca, permita-me buscar algo que possa fundamentar-me e possa justificar diante dos meus próprios olhos, antes que aos olhos dos demais". Estas palavras são nossa própria busca, a busca de todo homem que trata sempre de justificar-se - valorizar-se - diante dos seus próprios olhos e cuja justificativa diante dos demais é basicamente um tipo de reflexo de sua própria justificativa - auto- valorização - interior

Gilgamesh segue em todas estas trajetórias e aventuras até que chega um bom momento no qual, como em uma parábola muito parecida ao rapto de Perséfone, perde Enkidu. Este morre, e é notável a ternura com a qual Gilgamesh se dirige a seu amigo íntimo: toca-lhe, apalpa-lhe, fala-lhe... Vê que não lhe responde e pergunta: "Que é este sono tão profundo que lhe acolheu? Acredita que se trata de um sono profundo que lhe detém?" Gilgamesh lhe fala assim: "Que acontece que já não me responde? Teu coração não bate, tuas mãos não se movem, tão sonolento estais?" Gilgamesh vai pelas montanhas e pelos prados pensando em Enkidu morto. E se pergunta se também suas mãos que hoje se movem estarão um dia paralisadas e indiferentes, e se seus olhos já não verão, nem sua boca pronunciará palavras. Diz-se que tem que saber a verdade, saber onde está Enkidu, se é que está em algum lugar... "O que vai acontecer comigo, o que vai acontecer com todos os homens?"

O herói se pergunta sobre sua própria sorte e a de todos os homens. Decide ir ao fundo do mistério e descer aos infernos, como tantos outros seres mitológicos, para resgatar seu amigo Enkidu. Na descida aos infernos encontra também uma série de dificuldades. Tem que se encaminhar até onde o sol cai; tem que cruzar enormes oceanos; tem que vencer vários inimigos; por exemplo, um casal de escorpiões que lhe fecham o caminho. O escorpião sempre foi símbolo da morte da carne. Terá que vencer também um par de homens-águia, um homem e uma mulher, que lhe fecham o caminho.

Ele procura algo; sabe que alguém possuiu alguma vez a imortalidade, isso ouviu dizer. Quando cruzava os mares de Shamash, umas vozes proféticas lhe haviam revelado. Tratava-se de Utnapishtim. Este era alguém assim como um Noé; era quem havia se salvado do dilúvio, o que tinha feito uma barca mágica com a qual salvou todos os elementos vivos de um mundo passado para transferi-los a este Mundo Novo. Em pagamento a tudo isso lhe haviam concedido a imortalidade. Gilgamesh se apresentou diante de Utnapishtim e lhe perguntou o que precisava para resgatar Enkidu. Respondeu-lhe que precisava uma planta mágica que crescia unicamente no fundo do mar.

Utnapishtim fala com Gilgamesh e trata de convencê-lo de que os homens não podem descer à morte até o momento em que são chamados. Trata de convencê-lo de que esta "planta da imortalidade" existe somente para muito poucos e que a imortalidade consciente que ele tem não é uma benção, mas uma maldição para os homens; porque se os deuses lhe deram a possibilidade de esquecer as vidas passadas e de não pressentir as futuras, é porque isso é bom para os homens.

Diz o texto que Gilgamesh escuta respeitosamente, mas logo lhe diz: "Quero encontrar a alga da imortalidade. "Assim, desce até o fundo do mar, até o fundo do Oceano Primordial, o Okeanós grego, ou seja, o grande oco, a grande escuridão, a grande concavidade. Arranca a alga da imortalidade e começa a subir de novo até o mundo onde estariam os mortos para resgatar Enkidu.

Diz-se que ao deixar-se descansar Gilgamesh, uma serpente lhe tirou a alga. A serpente é um símbolo de sabedoria. Na Índia a encontramos como a Naja, ou seja, a serpente, a cobra de óculos, símbolo da Sabedoria, do Discernimento. Também nos sarcófagos dos egípcios e em suas estátuas há uma serpente no meio da testa, é o Oreus egípcio, também símbolo da Sabedoria, do Discernimento. É o Olho de Dangma, de que também falam os modernos hindus, ou seja, o Terceiro Olho no meio da testa que permite ver as coisas além da sua aparência.

Ao tirar-lhe a planta da imortalidade, a serpente impede que Gilgamesh possa resgatar Enkidu, que vai ficar no fundo dos infernos. Mas os deuses lhe dão um prêmio por haver realizado tantas proezas. Segundo a versão babilônica, lhe dão um prêmio que ao mesmo tempo é prêmio e maldição. A partir deste momento, Gilgamesh não irá morrer jamais, se convertendo em imortal; vai viver continuamente através dos homens. A princípio o herói se alegra e pensa que pode seguir vivendo embora Enkidu já não esteja ao seu lado. Mas ocorre que a árvore que ele amava se seca; que os homens e mulheres que ele amava, morrem; que a cidade de Uruk é destruída; que Langash desaparece; que os rios secam; que tudo muda, mas ele não.

Assim nasce o Mito de Gilgamesh como o do imortal que vai atravessando o tempo, vai atravessando todos os tempos, todas as humanidades. Nas tábuas rezam: "Tu que me lês; no tempo que estiveres, entre todos os congêneres, entre todos aqueles que estiverem contigo está sempre Gilgamesh." A que se refere? Refere-se a que há algum homem que através de toda a humanidade não morreu jamais, e que simplesmente muda de roupa sem que nos déssemos conta? Ou terá talvez um sentido mais interno? Não se referirá a que dentro de nós mesmos existe, de algum modo, um Gilgamesh? Não existirá no nosso interior alguém que sonha, que quer combater dragões, que quer atravessar montanhas, que quer saber se é realmente imortal? Esta é uma boa pergunta.

Do ponto de vista filosófico, a última versão é a mais aceitável. Sabemos que os ciclos biológicos impedem a vida perpétua, mas sabemos que além do biológico e do temporal existem elementos que podem perdurar porque não estão no tempo. O tempo é uma relação, como a distância ou como o tamanho. Tantas vezes nos temos perguntado: que é exatamente o velho e o novo? Que é o perto e o longe? Que é o tempo afinal?

Há uns dias estive em Lion, onde havia um grande relógio de pêndulo. Via como corriam os ponteiros, olhava o pêndulo que ia da esquerda à direita, da direita à esquerda, com seu som tão típico que faz "tic-tac, tic-tac", esse "tic-tac, tic-tac" que sentimos no nosso próprio coração como se fôssemos um relógio vivo. Mas, pensei em algo: que se não prestava atenção ao movimento do pêndulo, não sabia o tempo que passava; se não olhasse os ponteiros, tampouco sabia o tempo que passava. Obviamente, se tivesse ficado para sempre em frente ao relógio, a fome, a sede, o frio ou a velhice, me teriam feito sentir o tempo que passava. Mas não são estes requisitos o mesmo que os ponteiros ou o pêndulo? Do mesmo modo o Mito de Gilgamesh não se refere a algo que estaria além das formas, além dos requisitos?

Em todas as literaturas e em todas as velhas instruções, nas antigas lendas e nas diferentes religiões nos falam de ensinamentos parecidos. Eu creio de algum modo na escada que pode nos colocar em contato com nosso Gilgamesh interior, com este filho de Enlil, com Enkidu, o "duplo luminoso", para isto devemos ter sonhos, ter afirmações e pensamentos suficientemente grandes e poderosos. Dizia Unamuno: "Eu sonho com que nesta terra nasçam muitos loucos, porque tenho visto como os sensatos deixaram o mundo; seria melhor que viessem os loucos agora". Não os loucos no mal sentido, mas os "divinos loucos". Loucos como aquele Quixote que montava um cavalo de pau, o "Clavileño", pensando que era um cavalo real. Ou como quando combatia aos moinhos de vento dizendo que eram gigantes. Loucos capazes de combater, loucos capazes de fazer surgir de dentro o que têm como afirmação. Estes são os irmãos em uma guerra interior, como diria Nietzsche, ou seja, é o poder interior do homem, o real Gilgamesh que todos temos dentro de nós.

Quando, por exemplo, falamos da Acrópole em relação a estes mitos, nos referimos à Acro-polis, ou seja, à "Cidade Alta"; nos referimos a este fenômeno psicológico de ter no nosso interior uma "Cidade Alta", uma montanha, que entretanto, em geral, não nos atrevemos a escalar. Não nos atrevemos a descobrir-nos a nós mesmos, a falar do que sentimos, a escrever o que pensamos ou a viver do modo que teríamos que viver. E damos voltas e voltas ao redor de nossa montanha, como um cachorro que dá voltas antes de deitar-se. E afinal... a vida nos pressiona sem haver escalado nossa montanha interior.

O que nós queremos propor não é uma cidade alta nem de cimento nem de tijolos - destas já estamos cansados e tem contaminado a única beleza que tínhamos como patrimônio: a Natureza. O que queremos é uma Cidade Alta no verdadeiro sentido da palavra, ou seja, uma Acro-polis que nos permita não somente ter uma Cidade Alta, mas ser altos nós mesmos em nossos ideais; altos nós mesmos na nossa força.

Imaginemos uma lança, como esta lança que sustenta a bandeira da Espanha. Quando está ereta, quando está na vertical, então, é uma lança; mas quando está na horizontal, quando está caída no chão, não é mais que um pau. Que diferença existe entre um pau e uma lança? A verticalidade e o sentido. Que diferença existe, meus amigos, entre um pequeno ramo e uma flecha? Que o ramo está imóvel e a flecha está cruzando o ar. Que diferença existe entre um montão de bolhas formado por algum detergente em uma lavadora e a espuma maravilhosa nas costas do mar? Que a espuma do mar se formou com o choque de uma onda, que vinha de uma distância de quilômetros e quilômetros, contra o granito, contra a adversidade. É preciso que possamos retroceder dentro de nós, termos noção de nossa atemporalidade, fazer surgir em nós aquilo que de grande e importante possamos ter. Todos nós podemos fazer surgir o grande e o importante.

Não é minha intenção expor uma teoria abstrata, eu não quero expor uma teoria difícil, deixemos isto para as cátedras onde os professores de modo moderado "ditam" aos seus alunos. Eu quero mais um contato humano e dizer-lhes, de pessoa a pessoa, que possa existir esta capacidade de verticalização, que possa existir esta capacidade de ver as coisas, não na parte superficial, mas no seu aspecto profundo. Quero dizer-lhes que assim como uma lâmpada é tão só uma lâmpada quando tem uma luz dentro - pois esta luz deixaria de ser tal lâmpada e seria simplesmente um conjunto de metal e vidro - assim também um ser humano não é um ser humano só porque tem dois olhos, cabelos, braços e pernas, mas que o é porque tem algo mais, algo que o diferencia: uma vida interior.

Esta vida interior existe em cada um de nós e também está no meio de nós. Esta vida interior não se pode extrair de maneira simples, mas a extraímos de modo forte e profundo. O homem tem o tamanho daquilo que se atreve a fazer. Veja uma criança dar os primeiros passos; se quer alcançar uma coisa que está muito baixa, não precisa se esforçar, mas como se esforça nas pontas dos pés se quer pegar um doce que gosta! Se nós tivéssemos a mesma simples vontade da criança para dar passos sobre nossos pés, em nos colocarmos nas pontas dos pés para conseguirmos aquilo que queremos alcançar! Se pudéssemos levantar a mão e capturar as estrelas! Se pudéssemos elevar-nos sobre nós mesmos e levantar aquela parte móvel que temos para alcançar o que de verdade queremos alcançar!

Basta fazer este gesto. Basta ter esta resolução para que comece a nascer em nós Gilgamesh, o vencedor do Dragão, dos Cedros. Este Gilgamesh que poderia voltar a dizer: "Eu sou uma porta que deixa passar o vento, que não represa nada; eu sou uma vasilha que deixa escorrer a água, que não a retém nem a escraviza." Este Gilgamesh que pode descer até o fundo do mar em busca da imortalidade. Este Gilgamesh que ainda está em cada um de nós. Este Gilgamesh que surge a cada primavera sob a forma de folhas de árvores mais além dos troncos que estão secos... que surge outra vez nos berços na forma de crianças, que surge nas noites na forma das novas estrelas; este que se formará amanhã com o novo Sol que vai surgir.

Aqui está o sentido de uma juventude perene ou, como diriam os pré-socráticos, esta "Afrodite de Ouro" que nos permite ser eternamente jovens, eternamente agressivos diante da vida, no real e verdadeiro sentido da palavra. Que nos permita, como novos Leônidas, poder resistir às Termópilas do Destino; fazer-nos seguir pelos homens, e que os homens sejam nossos amigos e nossos companheiros, e seguir, nós também, aos homens mais nobres, aos mais valentes e virtuosos.

Estes impulsos, estas virtudes e estas forças que estão somente adormecidas em nós, não desapareceram. Quero dizer-lhes que este Mito de Gilgamesh, sendo tão antigo, é, contudo, muito novo e muito atual. Não creio de nenhuma maneira que o mundo de hoje seja mais materialista que o mundo de mil ou dois mil anos atrás, como muitos dizem. Talvez o seja inclusive menos, ainda que pareça paradoxal. Dentro do homem atual, como dentro do homem de todas as épocas, existe esta força de elevação. O que temos que fazer é tratar de ver que parte de nós é capaz de levantar-se, que parte de nós é capaz de pegar essas estrelas e trazê-las para a Terra. Eu sei que, às vezes, estamos numa noite; é certo que este é um momento obscuro onde há materialismo, sei que há exploração, sei que há ignorância, sei que há luta, que há violência, que há incompreensão para muitas coisas... Mas também sei que na noite mais escura, se conseguirmos acender uma pequena fogueira nos servirá para iluminar-nos e esquentar nosso corpo, que, além disso, será vista de muito longe. E se conseguirmos fazer muitas fogueiras na Terra, vamos reproduzir o fenômeno celeste das estrelas acesas.

Desde os mais antigos barcos até as mais modernas aeronaves ainda se guiam pelas estrelas fixas. Eu creio que as humanidades também se guiam pelos "Homens-Tocha", por aqueles que sabem arder. Existe um milagre e um mistério nas velhas lâmpadas de azeite que usavam os gregos e romanos. Transmitem-nos o simbolismo de que eram feitas de barro, tal e qual é barro o que nos compõe a nós, mas tinham algo móvel dentro de si, líquido, como é nossa própria psique que nunca está realmente em um lugar determinado, pois divaga e se balança ao ritmo dos nossos pensamentos: "isso eu gosto, isso eu não gosto; isso me interessa, isso não me interessa; quero ir, não quero ir, etc." Mas, quando este líquido entra em contato com o fogo, este líquido começa a consumir e a casca que era de barro, que era tão só um pouco de água e terra amassada, se transforma então num barco que porta o fogo. Dentro de cada um de nós pode surgir essa chama, essa força. Essa força faz mudar todo o sentido da nossa vida. Essa força nos faz entender os velhos mitos e os novos problemas. Essa força permite dirigir-nos aos homens com maneiras simples, com palavras simples... e ser entendidos. Essa força nos permite construir, recriar, unir-nos, amar... É a Força Interior, a única força que vale, a única força real e espiritual. Porque não é uma força de contemplação, mas uma força ereta como uma lança, uma força que é capaz de lutar pelo que acredita, de vibrar por tudo aquilo que sente, como uma harpa eólica que pode pendurar-se entre os ramos de uma árvore e somente o vento a faz vibrar.

Não digamos que não temos oportunidades! A oportunidade histórica se dá hoje como se deu na Suméria, em Roma ou como se dará dentro de mil ou dois mil anos. A verdadeira oportunidade está dada no nosso próprio mundo circundante e em nossa própria capacidade de poder vivê-la. Daí dizemos que este Mito de Gilgamesh, tão complexo para estudá-lo do ponto de vista teológico, é simples para vê-lo em uma pequena conversa filosófica; este Mito de Gilgamesh é atual no aqui e agora. Este Mito de Gilgamesh somos nós mesmos.

Temos que atrever-nos a sonhar três vezes - como Gilgamesh - com um machado luminoso para que desça junto a nós um companheiro de aventuras. Temos que recriar de novo nos homens o sentido cavalheiresco das proezas e nas mulheres o sentido que inspira as proezas, como o fazem as autênticas damas. Temos que recriar dentro de nós a força capaz de vencer o destino e os astros. Hoje falamos de astrologia, hoje falamos do destino, hoje falamos de pressão do meio, etc.; mas, se fôssemos realmente fortes, se tivéssemos um motor próprio, todas estas circunstâncias seriam aproveitadas e vencidas.

Que cada uma das dificuldades e adversidades sejam simples degraus sob nossos pés; e assim levaremos cada um de nós - dentro de nós - o velho Gilgamesh; teremos também a lembrança desta serpente que nos tira a uma imortalidade sonhada, mas que nos dá uma imortalidade real; teremos a lembrança de nossas proezas e poderemos deixar este mundo sem irmos jamais; porque permaneceremos, de alguma forma e de alguma maneira, mais além destes grandes enganadores que são o Tempo e o Espaço.

Estas não são simples palavras. Perguntemo-nos sempre: o que é uma coisa grande? O que é uma coisa pequena? O que é uma coisa velha? Se não podemos definir estas coisas tão simples, como poderíamos definir a vida? Todos estes conceitos são meros correspondentes. O que importa é o que está mais além do correspondente, mais além das dualidades, mais além da adversidade.

O que importa é lançar-se adiante, ter fé em um Ideal, ter fé em si mesmo, ser novos Gilgamesh, cada um de nós. Todos talvez...?



Jorge Angel Livraga

Fundador de Nova Acrópole